A BOMBA PAQUISTANESA

RICARDO HOLMER HODARA

 NOTA: Este artigo foi publicado no Jornal RS, em Porto Alegre, algumas semanas antes dos testes da bomba nuclear paquistanesa, fato iminente que a matéria prevê.

"Eu estava sentado, certa vez, como prisioneiro (há muito tempo) quando assisti um soldado camponês, recentemente equipado com uma submetralhadora, balançar a arma lentamente na direção de meu corpo. Era uma arma bonita e o dedo dele brincava, indecisamente, com o gatilho. De repente, possuir todo aquele poder e ser proibido de usar!! Aquela proibição era muito fraca para conter um homem naquela situação... Eu me lembro, também, de uma voz feminina de comando, então, protestando próxima de mim -- a voz civilizadora e eterna de mulheres que conhecem os homens e que sabem que estes são bobos e crianças, e irresponsáveis. Obedientemente, o camponês afastou a arma para longe de meu peito. Os olhos pretos sobre o cano da metralhadora olharam-me perigosamente, um olhar que também desejava um pouco mais de compreensão.

"Thompson, Tome'- son", ele repetiu, orgulhosamente, dando tapinhas na lateral da arma. "Tome' - son." eu concordei com a cabeça, um pouco fraco e relaxado depois de um suspiro. Afinal de contas, éramos homens, e entendíamos este grande assunto de destruição. E eu não era um cidadão do país que tinha produzido aquele mecanismo maravilhoso? Assim, eu concordei novamente e disse, cuidadoso, depois dele: "Thompson, Tome'son -- bueno, si, bueno". Nos olhamos um ao outro, então, e sorrimos um sorriso masculino que percorreu todo o mundo e todo o passado desde hoje até a Idade do Gelo. Em corredores acadêmicos, considerando o futuro da humanidade como antropólogo, eu nunca estive totalmente livre da memória daquele sorriso do soldado. Eu peso aquela experiência, mentalmente, em relação ao futuro, sempre que velhos crânios, esquecidos e delicados‚ são colocados sobre minha escrivaninha."

Loren Eiseley -- The Immense Journey (traduzido por R.H. Hodara)

 

Um dos grandes erros da Esquerda sempre foi misturar enunciados éticos (ou políticos -- nacionalismo, comunismo, etc...) e ciência. Já ouvi de tudo sobre tudo da boca de marxistas (e psicanalistas). As causas que levaram ao desastre da Bomba em Hiroshima, por exemplo.

Já se disse que os yankees usaram a Bomba em Hiroshima para poupar mortes em geral, já se disse que a utilizaram para poupar as vidas dos soldados americanos numa invasão anfíbia do arquipélago japonês. Já se disse que a Bomba foi usada para testar a energia nuclear sobre cidades e, dessa forma, avaliar o resultado real da nova arma. Já se disse, enfim, que a Bomba foi usada porque era apenas uma arma muito eficiente para destruir quartéis e bunkers japoneses importantes (e, de fato, o quartel general do Almirantado Japonês ficava em Hiroshima). 

A lengalenga marxista afirma que os americanos usaram a Bomba para evitar a divisão do Japão com os russos soviéticos que haviam declarado guerra a Hirohito apenas algumas semanas antes de Hiroshima. Tremenda bobagem. Afinal de contas, os americanos haviam começado a fabricar a Bomba (para usá-la contra o Japão, obviamente) muitos anos antes. 

Para os marxistas, portanto, a Bomba sobre Hiroshima poderia ser encarada como um fenômeno causado pelo início da Guerra Fria (ao final da II Guerra Mundial).

O que os historiadores marxistas e sociólogos clássicos em geral não sabem, é que existe uma metodologia mais adequada para explicar fenômenos humanos comportamentais: trata-se do método multifatorial. É óbvio que os cientistas sociais clássicos estavam em busca de uma Causa Central, ou Principal, ou Hegemônica para o fenômeno. Isso caracterizaria as demais causas alegadas e explicações dadas como mentirosas (frutos da luta de classes e de suas conspirações... o que confirmaria a teoria marxista).

No entanto, essa abordagem "monolítica" -- tipo "nenhum outro homem a bordo" -- não é necessária. Não é nem a única abordagem, nem a mais frutífera em termos analíticos e científicos. É claro que os yankees usaram a Bomba contra Hiroshima, em parte, porque seus generais não pretendiam perder mais soldados na guerra. De fato, os estrategistas americanos, hoje, não admitem perder muitos soldados numa guerra: seus cálculos da "lucratividade" de uma guerra sempre exigem uma contagem vitoriosa de no mínimo 100 soldados inimigos mortos por cada americano morto. É natural que esse pensamento existisse na cabeça dos generais já em 1945. É possível que houvesse um maior número de mortes japonesas, caso a Bomba não tivesse sido usada e a guerra convencional tivesse continuado, embora houvesse evidências da iminente rendição, não incondicional, a ser proposta pelo Japão.

Entretanto, é claro que essa última possibilidade -- poupar vidas japonesas -- não fez parte do conjunto de causas que levaram ao uso da Bomba, pelo simples fato de que uma guerra não é conduzido pela Liga das Senhoras Pacifistas de Seattle. É evidente, por outro lado, que um dos interesses dos militares, ao usarem a Bomba, foi descobrir os efeitos daquela arma nova dentro de um teatro de guerra real. E isso também explica, em parte, o porquê do uso da Bomba. A Vila Japonesa, criada no deserto do Novo México, em tamanho natural, e exposta a radiações de uma pilha atômica de núcleo exposto (sem blindagem) colocada numa torre à cerca de 100 metros de altura, também não produziria dados suficientes.

Era necessário, para os militares, testar a arma real numa população real e contra casamatas reais para verificar seu efeito militar. E isso também foi feito, queimado-se a carne humana de milhares de civis. É claro que esses "detalhes" causais não interessam à maioria dos cientistas sociais marxistas: eles estão em busca da Poderosa Causa Única que confirmaria o marxismo. A saber, aquela Causa Fundamental que seria exclusivamente econômico-política, e que mostraria que todas as nações lutam e morrem apenas devido à intenção inconfessa de defenderem os interesses materiais e as riquezas das classes dominantes. Quanta bobagem monolítica.

Enfim, para os historiadores deveria também ser muito claro, caso os mesmos não estivessem em busca da Poderosa Causa Única, que os estrategistas yankees não desejavam disputar o Japão derrotado (pelos esforços americanos, diga-se de passagem) com seus rivais comunistas russos. Qual foi, então, a causa fundamental da Little Boy ter sido jogada sobre Hiroshima naquela manhã de seis de agosto de 1945?

Bem, está claro que não há resposta para essa pergunta, pois a mesma está produzida de forma absolutamente metafísica, ontológica. Logo, a resposta teria que ser, da mesma forma, não científica. A pergunta deve ser: Quais foram as causas que levaram ao uso da Bomba em Hiroshima? Dentro de uma condição ecogenética e multifatorial, a resposta deve ser: todas as causas sugeridas. 

Não haveria como determinar, no entanto, qual dessas causas seria a "única", a mais importante? Não, a nosso ver, não haveria. No entanto, em estudos multifatoriais do comportamento humano social, verificamos a existência de causas desencadeantes ou "desencadeadores comportamentais". Essas causas são como a faísca que põe fogo à pólvora -- condição sine qua non para que exista o fenômeno. 

Teria sido essa causa, esse fator mais forte, a causa apontada pelos marxistas -- "roubar" o Japão e suas riquezas da divisão com os comunistas soviéticos que avançavam, e de uma possível revolução socialista em território japonês, anti-capitalista e anti-americana? Teria sido essa causa mais importante, a causa apontada pelos militares americanos -- poupar as vidas de seus soldados? Teria sido essa causa especial, a causa apontada pelos sociólogos folk -- testar a arma, vencer a guerra? 

Nenhuma dessas causas pode ser considerada como fator desencadeante, está claro Os americanos jogaram a Bomba sobre Hiroshima porque os japoneses não podiam revidar, simplesmente isso. Os japoneses não tinham a Bomba, não dispunham de um revide à altura. Como diz o grande antropólogo Loren Eiseley, na epígrafe, nós somos biologicamente guerreiros e a lógica implacável que seguimos, numa guerra, está gravada em nossos genes. Dada a condição social adequada e as possibilidades específicas de uma guerra (ou batalha isolada), e dada nossa herança multifatorial de comportamento, e estará dado o fenômeno. No caso, jogar duas bombas atômicas sobre o inimigo.

À cerca de 20 anos, a Índia detonou um dispositivo nuclear no deserto de Rajasthan. A data em questão era 18 de maio de 1974. A detonação, confirmada pelo Ocidente, teve um rendimento (informado) de cerca de 15 kilotons. Ou seja, tratava-se de um artefato nuclear de fissão equivalente a 15.000 toneladas de dinamite, cerca de três vezes a capacidade da bomba de Hiroshima. A Índia caracterizou o teste como sendo para propósitos pacíficos e aparentemente não armazenou armas.

O Paquistão declarou, em seguida, que seu programa nuclear também tinha propósitos pacíficos, mas adquiriu a infra-estrutura necessária de instalações para produzir armas em série -- mísseis inclusive -- e é muito possível que o Paquistão já possua a Bomba. Considerando que ambos os países "sofrem" de uma rivalidade histórica de origem cultural, religiosa e étnica, não é muito provável que o Paquistão resista à provocação e não detone algumas bombas nucleares no subsolo também. Mais que isso: eu estou me propondo a apostar, prever mesmo, que o Paquistão irá detonar algumas bombas nos próximos dias ou semanas. Penso, mesmo, que essa é a única forma de não eclodir uma guerra entre potências nucleares: a possibilidade do revide nuclear.

Um bando de primatas em guerra somente deixa de buscar à destruição de outro bando rival se não for capaz de realizar tal ato - se for destruído, por exemplo - ou se houver a formação de um vínculo material (ecogenético) e hierárquico de dependência e aliança entre tais bandos, a vassalagem primata (vide "Guerra de Chimpanzés" da famosa estudiosa de comportamento comparado Dra Jane Goodal).             

Leia-se: ou o Paquistão explode uma bomba, para assim evitar a guerra pelo equilíbrio do terror, apesar da posição contrária dos Estados Unidos -- que foi seu maior aliado contra o governo comunista do Afeganistão - ou se produz uma aproximação sistêmica entre aquelas nações e governos através da globalização das relações entre Paquistão, Índia e outros países -- aproximação essa gerada pela mútua dependência econômica que possa conduzir na direção de um universo cognitivo-comportamental contrário ao etnocentrismo, à xenofobia religiosa e à guerra entre culturas. 

Havendo essas duas possibilidades, portanto -- equilíbrio nuclear e globalização -- simplesmente não creio em guerra entre os países em questão.

maio de 1998