TOLERÂNCIA ZERO

RICARDO HOLMER HODARA

O que diversas cidades norte-americanas, culturalmente muito diferentes, têm em comum com a cidade de Nova Iorque?

Resposta: todas elas alcançaram reduções significativas na atividade criminal implementando estratégias simples de controle de crime baseadas numa idéia chamada de Teoria da Janela Quebrada, ou "Tolerância Zero".

A Teoria da Janela Quebrada apareceu primeiro em 1982 num artigo do Atlantics Monthly. As idéias expressas no artigo, escrito pelo cientista político James Q. Wilson e pelo psicólogo criminologista George Kelling, se tornariam a "filosofia de fundação" da nova e agora eficaz comunidade policial norte-americana.

De acordo com a teoria que veio a se converter no único paradigma bem-sucedido de redução criminal conhecido na História Americana, se uma janela está quebrada e não é consertada depressa, os ofensores potenciais verão isto como um convite para quebrar mais janelas.

As pessoas em geral adquirirão a idéia de que ninguém se preocupa, e de que ninguém parará de quebrar mais e mais janelas. Quando as janelas nunca são consertadas, e mais estão sendo quebradas, um senso de desordem é criado. Um senso que facilita, quando não incita tacitamente, à mais ação criminal.

O crime incontrolado e a desordem criam mais crime e desordem, e se forma um ciclo "autoperpetuante" que alimenta e incrementa o caos criminal.

A Teoria da Janela Quebrada, ao estudar este ciclo de comportamentos anti-sociais e criminais, baseou-se em diversos experimentos, dentre eles uma experiência famosa administrada por um psicólogo universitário de Stanford que envolveu dois automóveis idênticos. Um dos carros era estacionado numa rua num bairro de classe-média e o outro estacionado numa rua num bairro de baixa-renda e de altos índices criminais.

RESULTADO EXPERIMENTAL DRAMÁTICO

O carro no bairro de baixa-renda foi "depenado" antes do dia seguinte, enquanto o carro no bairro de classe-média permaneceu intacto por uma semana, quando também foi "depenado". Então, os psicólogos investigadores de Stanford esmagaram o pára-brisa do carro estacionado no bairro de classe-média, e novamente se retiraram para assistir.

Dentro de poucas horas, o carro no bairro de classe-média foi "depenado", da mesma forma que o carro no bairro de altos índices criminais e de baixa-renda havia sido "depenado".

RAZÕES HISTÓRICAS

Este resultado é comparável ao que aconteceu na Grande América durante os últimos trinta anos, incluindo nosso Brasil. Como sociedade, nós ficamos mais permissivos ao longo dos anos sessenta, e nosso comportamento – enfeitiçado pelo "glamour" do anti-convencionalismo – era incontrolado.

Renegou-se a tudo e a todas as autoridades: através da negação das tradições sociais, da família, do comportamento "careta", da defesa da "lei e da ordem", dos governos – fossem eles democráticos como nos USA ou ditatoriais como no Brasil – isso pouco importava, pois todo governo era maldito e toda autoridade era desonesta ou "fascista".

Nos USA, a droga e o abuso do álcool se tornaram aceitáveis. Em anos recentes, no Brasil, diversas medidas liberalizantes foram adotadas, com o fito de evitar a suposta "discriminação" dos mais diversos padrões de comportamento associados a sujeitos: como o fim do crime de vadiagem e prostituição, eliminação legal do crime de adultério e legalização das relações conjugais ilegítimas. Tal liberalização chegou ao ponto da mais absurda inconsistência lógica, como visto no caso da nova lei do concubinato que "não pegou", pois legalizava, implicitamente e de forma auto-contraditória, a bigamia masculina.

Além disso, estamos vendo acontecer diante de nossos olhos, o surgimento de novas leis ainda mais liberalizantes, como o afrouxamento da repressão ao pequeno tráfico de drogas, eufemisticamente intitulado pelos defensores da liberalização como "uso de drogas para consumo pessoal". Tal tipo de legislação, liberalizante de facto senão de jure, torna impossível punir o pequeno "laranja" que realiza um pequeno tráfico de drogas – sendo, portanto, um traficante – e que também consome a droga que trafica em pequena escala. Livra-se, assim, não apenas o consumidor de drogas, mas, também, o pequeno traficante de drogas. Pequeno hoje, grande amanhã... Some-se a isso, no Brasil, em particular após o surgimento do Estatuto do Menor e do Adolescente (ECA), uma nada virtual impunidade para menores de idade, independentemente da gravidade moral e do dano social de seus crimes.

Ainda mais recentemente, e ao nosso ver de forma trágica, estamos vendo políticos ligados aos assim chamados "Direitos Humanos", lutando por aumentar ainda mais a liberalização legal da repressão ao crime e à contravenção – como a eliminação da punição prisional para praticantes de estelionato, roubo sem agravante, furto e tráfico de drogas em "pequena escala", e a filosofia de não construção de mais penitenciárias, com base na idéia de que as mesmas são inúteis – tendo que sair, necessariamente, um criminoso preso sempre que um outro entre no sistema prisional.

No conjunto dessa liberalização criminal sem precedentes históricos, o próprio trabalho passou a ser considerado como pouco importante ou "careta". A boa educação e as boas maneiras passaram a ser vistas com desconfiança. O conhecimento objetivo e a ciência exata passaram a ser desprezados como assunto de "Nerds", ou de outros "malucos". À medida em que toda a realidade individual é considerada com subjetivamente dada, a pessoa que respeita a lei e que não opta pela corrupção, ativa ou passiva, passou a ser considerada "otária".

Não era, enfim, mais necessário casar para se viver junto, e, em pouco tempo, não era mais necessário sequer a formação de uma família, de um casal, mesmo que por tempo reduzido, para que se tivessem filhos.

No Brasil, popularizou-se a chamada "produção independente", e nos USA, o seguro social e seguro desemprego atuam como o verdadeiro pai provedor das mães-solteiras, inicialmente negras, sempre em número crescente – fenômeno este, agora também começando a ocorrer dentro da população americana branca. E é bom que se saliente: nunca houve tanta oferta de emprego nos Estados Unidos como nesse mesmo período. Mas para que trabalhar, se o Estado nos dá tudo, inclusive ocupando o lugar de um pai provedor e da família?

Mas, ironicamente, os anos sessenta eram muito bons de ser vividos, pelo menos era o que nos parecia. Era o "Viva e deixe viver", o "Não confie em ninguém com mais de trinta anos", era o banimento de regras sociais de qualquer tipo. Toda suposta eliminação de qualquer "sentimento de posse" era bem-vinda. Viva o momento e morra jovem! A Vida não passa de uma sucessão de momentos felizes (ou infelizes).

E, é claro que entre os sonhadores "revolucionários" bem-intencionados havia se criado inconscientemente um covil biologicamente adequado à proliferação de criminosos. Exemplo disso é o bem conhecido caso da "família" de assassinos hippies, a "família" Manson -- os jovens criminosos que praticaram os assassinatos seriais Tate-La-Bianca em nome da "revolução americana".

Enfim, o sistema de justiça criminal nos USA (e aqui) não estava equipado para fazer retroceder a maré da mudança psicossocial, e o crime cresceu rapidamente pelos anos setenta.

Na realidade, o sistema de justiça criminal norte-americano contribuiu para o problema involuntariamente, abandonando as atividades de repressão aos pequenos delitos cotidianos e as atividades de manutenção da estrita ordem pública, para se concentrar nos crimes mais sérios.

Esse, inclusive, é o mesmo tipo de erro que os políticos dos "direitos humanos" de uma certa ala equivocada da Esquerda estão tentando cometer no Brasil, neste exato momento. Tais políticos querem que a Justiça e a Polícia só invistam maciçamente e repressivamente contra os crimes mais perigosos, a saber, contra os crimes contra a vida ou "gangsterismo" milionário comprovado.

Esquecem que já foi demonstrado que tanto as personalidades quanto os históricos de vida do pequeno delinqüente ao longo do desenvolvimento criminal são basicamente iguais aos dos grandes criminosos. Essa descoberta empírica foi realizada ao final dos anos setenta na América do Norte.

Esse erro de avaliação que aqui ocorre nesses setores equivocados da Esquerda gaúcha e nacional, são como um "replay" dos erros dos pensadores sociais e acadêmicos norte-americanos dos anos sessenta e setenta. Aqueles pesquisadores e pensadores de então, diziam ao establishment e ao governo norte-americanos que a polícia deveria ignorar violações insignificantes e dedicar seu maior tempo e esforço procurando assaltantes perigosos, latrocidas, e os criminosos mais violentos.

II

Era dito aos oficiais de polícia que o crime havia sido gerado por fatores sociais que estavam além do controle policial, e que havia pouco a fazer além de se tentar prender os criminosos mais sérios.

O modelo "profissional" de policiamento emergiu para focalizar o atendimento rápido do 911 – copiado no Brasil através do 190 – dando, com isso, resposta rápida e rápida investigação aos "crimes sérios", num atendimento feito por demanda das vítimas, e caso a caso.

A pacificação da comunidade, através da presença de autoridade constituída, assim como a constante presença anti-motim da polícia, foi rebaixada na lista de prioridades.

Ou seja, o novo sistema implementado de policiamento, exatamente o oposto da Tolerância Zero bem-sucedida nos dias de hoje, foi o sistema que negligenciava as "pequenas" reclamações de amolação contra cidadãos e as violações da ordem. Os "reais ofensores", aqueles que deveriam ser investigados e punidos, deveriam ser apenas os gangsters, e colarinhos brancos, assassinos e traficantes poderosos, e nunca os pequenos criminosos e delinqüentes. Essa foi a filosofia errônea que levou a instalação do 911 (o "190" americano) e à crença de que tal sistema deveria ser o pilar central da atividade policial repressiva.

A polícia passou a gastar horas e mais horas, apressando-se a atender toda e qualquer chamada do 911, pulando de chamada em chamada, e assim se distanciando de sua antiga atividade anti-motim e de pacificação das comunidades.

A figura chapliniana, odiada pelas Esquerdas acadêmicas brasileiras enraivecidas e cegas pela ideologia – aquela figura do guarda que caminha pelas ruas, balançando o cacetete para lá e para cá – tornou-se coisa do passado. Assim como tornou-se coisa do passado, a ordem pública e a existência de bairros pacíficos onde os violentos estivessem contidos em sua fúria e índole criminal individual.

Mas, como de hábito, quando se substitui princípios científicos por princípios religiosos ou ideológicos, os resultados de qualquer atividade começam a se mostrar errôneos e a fracassar em termos de resultados práticos.

A polícia americana começava a se ver perplexa, diante do aumento nos índices de crime que começavam a piorar, dramaticamente. O crime aumentava, e da noite para o dia.

Enquanto isso, os ideólogos e ativistas se esforçavam, rapidamente, para culpar novos fatores sociais, novos aspectos econômicos e demográficos por isso – de forma ad hoc – ao invés de reconhecerem o fato óbvio de que haviam sido as mudanças na filosofia da polícia, a causa do aumento per capita do crime nas grandes cidades.

Quando o rush do advento do crack atingiu os Estados Unidos, por volta de meados dos anos oitenta, a América do Norte sofreu uma nova agressão e intensificação de crime e violência. Esta droga nova era barata, fácil de usar, prontamente disponível, e altamente viciante.

Usuários, via de regra pequenos traficantes de baixa renda de bairros pobres, tornaram-se mais propensos à violência sob sua influência. Um novo tipo de gângster de droga passou a aterrorizar as ruas dos bairros de baixo-renda da América.

Estavam em jogo lucros enormes, distribuídos ao longo de toda a pirâmide social dos traficantes de drogas – dos criminosos de mais baixa hierarquia até os gângsters internacionais. Todos eles, freqüentemente mais bem armados que a polícia.

Os moradores colocaram fechaduras extras em suas portas. Os mais pobres e honestos trancaram seus filhos, numa tentativa vã de que não fossem aliciados pelos psicopatas criminais locais e líderes de gangues.

Os mais ricos, contrataram seguranças e se retiraram para bairros menos populosos, bem guarnecidos e "racialmente puros" – construídos com essa finalidade (como Crescent Bay na Califórnia e Sun City, dentre outros).

Isto é, para locais onde se sentissem mais seguros, mais afastados de estranhos perigosos, e mais próximos de pessoas semelhantes e aparentemente mais familiares e pacíficas.

As violências urbanas alcançaram as alturas, e muitas ruas de bairros de baixa-renda se tornaram galerias de tiroteio sangrentas, espalhadas pelas cidades da América do Norte.

O americano médio foi intimidado e amedrontado pelo que via nas notícias de televisão, e a onda de violência começou a se espraiar das cidades e ruas de baixa-renda, atingindo os locais de moradia que os americanos chamam de subúrbios – que são como nossos bairros de periferia e moradia de classe média e de assalariados, apenas bem mais afastados dos centros urbanos.

A epidemia de crack e cocaína reforçou a necessidade por uma estratégia nova. E a Comunidade Policial, diante das evidências, abandonou as idéias liberais da moda e encontrou disponível nas prateleiras, desde 1982, um livro que iria fazer história: seu nome era FIXING BROKEN WINDOWS (Consertando as Janelas Quebradas).

Infelizmente, nosso atraso em relação às mudanças acadêmicas norte-americanas e em relação às descobertas científicas é muito grande. Eu mesmo, como psicólogo, professor e cientista cognitivo, só importei o livro de Wilson e Kelling recentemente, em parte por não haver tradução do mesmo e pela facilidade, recém-surgida, de comprar pela internet através do uso de cartão de crédito.

Sob a filosofia do Broken Windows, há duas fontes causais de incremento de crime e desordem:

A atual Comunidade Policial Americana, pós-Teoria da Janela Quebrada, insiste que crimes individuais sejam vistos como parte de um padrão maior, e que os moradores de bairros de baixa-renda e onde quer que haja um padrão estatístico elevado de crimes dentro da cidade, sejam envolvidos no problema e protegidos pela polícia, agindo como cidadãos exemplares na denúncia dos infratores e criminosos, doa a quem doer, sob a lei democrática e anti-criminal comum a todos.

Em resumo, a Comunidade Policial Americana passou a se preocupar com o crime sob uma matriz ecossistêmica, biológica e computacional. As idéias começaram a se espraiar aos quatro ventos, e muitas agências de polícia escolheram atingir os problemas físicos, coletivos e ambientais em primeiro lugar. E, enquanto limpavam as ruas, literalmente fixando as janelas quebradas, passaram a implementar o programa de Tolerância Zero.

O problema era que quando os policiais, assistentes sociais, e pessoal da saúde pública virava as costas, as janelas tendiam a ser quebradas novamente.

Os resultados mais duradouros vieram com aquela combinação que veio a ser conhecida, publicamente, como "tolerância zero": a polícia ostensiva e bem conhecida de todos os moradores – mais ou menos semelhantes aos nossos antigos guardas de quarteirão – pacifica o bairro, e o conjunto dos funcionários e trabalhadores sociais "limpam" a rua, simultaneamente.

Estando a rua policiada, e o bairro livre de criminosos condenados e recorrentes, e se mantendo a ordem pública, torna-se mais fácil para os demais servidores públicos realizarem o conserto das janelas, honrando a propriedade pública e privada, e mostrando que todos os membros da comunidade, sob um rígido esquema legal e moral, são, um a um, os proprietários e os responsáveis por todos os bens públicos e privados.

Não há um simples muro sequer sem dono ou responsável, na "tolerância zero". Não há qualquer contraventor sem punição, e não há "bandido" fora da cadeia ou sem punição exemplar.

E não há rua desguarnecida pela polícia, ou com moradores vítimas de medo de retaliações ou de vinganças locais. A família funcional é chamada a participar, e a família disfuncional – com espancamentos de mulheres, drogadição ou maus tratos a crianças – é severamente denunciada, punida ou desfeita, e eventualmente levada às barras dos tribunais e à prisão.

Redescobriu-se, depois do fracasso total das idéias acadêmicas criminológicas de "esquerda", uma idéia velha: a de que o modo mais efetivo para lidar com o crime de rua, incluindo o tráfico de crack, é o policiamento antiquado, regionalizado, comunitário, contínuo e ostensivo, e de caráter anti-motim.

Ricardo Holmer Hodara

Professor de Psicologia, psicólogo clínico, formação e especialização clínica em tratamento de síndromes genéticas psicológicas, mestre em teoria cognitiva da linguagem, doutorando em Informática de Processos Cognitivos, autor de diversas publicações e ensaios.